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Escritos e reflexões sobre as experiências com a Medicina de Família. Histórias inspiradas em casos reais a partir dos quais uso nomes fictícios e algumas alterações para preservar a identidade das pessoas.  As narrativas envolvem tanto pacientes quanto experiências na docência e minha própria história com a especialidade.

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Foto do escritorAna Paula Seibert

Clínica da Saudade

Márcia* era uma mulher de 30 anos, com 1 filha pré-adolescente, trabalhava em loja e parou com a vinda da pandemia, e veio na consulta agendada com os alunos para “revisão pós operatória”. Era o que dizia no sistema sobre o motivo da consulta. E era a “queixa principal” nos moldes da semiologia tradicional.

Ocorre que Márcia, após cirurgia devido a uma gestação ectópica bem complicada, que lhe rendeu 1 semana de internação, estava sem nenhuma queixa relacionada a isso. O que chamou a atenção de Júlia* do 8º semestre foi o número de tantas outras queixas... Márcia tinha cefaleia, às vezes dor lombar, uma secreção leitosa que saía de um mamilo e mais algumas outras queixas inespecíficas e vagas. No exame físico, “tudo normal, prô”. Mais tarde, a colega comentaria: “ Fiquei pensando em como ela se organizaria pra te passar o caso, pois eram tantas queixas!”

Márcia estava de poucas palavras, bem objetiva: “Está trabalhando?” “Não”. “Está bem?”  “Sim.” Revisamos o abdome, e nos tranquilizamos com o exame das mamas: a secreção não era de drenagem espontânea, as outras características eram todas benignas e não havia absolutamente nenhuma alteração. Não pesamos novamente Márcia, mas saíram uns 5 kg de seus ombros quando falei “Com esse exame ficamos mais tranquilos com relação a mama”.

Após o primeiro contato, e o toque cuidadoso ao exame físico, confessou que pensava em ter mais um filho, mas não agora, por isso queria voltar a usar anticoncepcional , mas que o marido hesitava em ter mais um... Não estavam bem afinados por assim dizer. E seguimos a consulta.

Márcia quis saber as causas de sair leite do mamilo, e citamos, entre outras, o estresse.

-“ Ish...Esse tem de monte”

Júlia, perspicaz e espontânea, aproveitou:

- “Você anda muito estressada?”

- “ Eu sou estressada” e riu (talvez pra não chorar).

- “ Ah.. Não assim... Não seja assim”, Júlia brincou.  Márcia ficou cada vez mais confortável e Júlia puxou a corda, aquela que descortina a janela para a vida de quase toda pessoa:

- “ Me conta um pouco mais”

- “ É, na verdade além do susto dessa cirurgia, tem os estresses em casa, fico estressada quando meu marido não faz o que eu quero... e tenho o pavio curto... E ainda, minha mãe foi embora recentemente...


Mais tarde conversaríamos entre nós sobre a dúvida que todos tivemos se ela havia viajado ou falecido, tamanho o sentimento e luto transmitidos na frase.

Mas a mãe dela tinha viajado mesmo. Para São Borja, abismais 384Km distantes da cidade de Márcia. A mãe era de lá e retornou, há mais ou menos 2 meses, para cuidar da avó, que descobriu um câncer adivinhe de quê....

De mama.

Márcia e a mãe se falavam quase todo dia pelo celular desde a viagem, mas nem se comparava ao convívio colado que tinham aqui. Aprofundei:

- “Sente saudades né?”

Márcia confirmou com a cabeça e o olhar.

Saudades. Vontade de ficar perto. “Lonjuras”, aquelas do Denison Mendes.

Então compreendemos o sentimento de Márcia, e ela entendeu que a entendemos, o que foi o principal. E perguntamos, ela no centro da nossa clínica das saudades:

“- No que você acha que a gente mais pode te ajudar, Márcia? O que é o principal pra você?”

O mundo parou, Márcia se organizou e elaborou:

- “ Queria mesmo saber se estava bem! Mas... agora vocês falaram que tô bem... então tudo bem!” e deu uma risada aliviada.

- “Se é isso que você queria saber, bem, é isso mesmo: Você está ótima! E vai longe! Como você está agora? Está mais tranquila?”

- “Tô... nossa... Muito mais tranquila!”

Claro que ela tinha contado pra mãe que consultaria. E combinamos:

- “Liga pra mãe, Márcia. Fala que você veio aqui, e que está tudo bem! Tranquiliza ela.” (Nas entrelinhas: te tranquiliza Márcia).


Nos despedimos sorrindo e com aquela sensação boa de alívio: Márcia estava tranquila, e nós também, por termos aliviado o sofrimento, que nem sempre é doença.

Márcia iniciou uso do anticoncepcional prescrito, não vai conseguir viajar para São Borja por enquanto, mas vai ver mais vezes a irmã que mora perto, vai continuar próxima da mãe do jeito que dá, e nós... nós continuaremos perto de Márcia.

*Nomes fictícios

 

2021

Ana Paula Seibert

 

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