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Escritos e reflexões sobre as experiências com a Medicina de Família. Histórias inspiradas em casos reais a partir dos quais uso nomes fictícios e algumas alterações para preservar a identidade das pessoas.  As narrativas envolvem tanto pacientes quanto experiências na docência e minha própria história com a especialidade.

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Foto do escritorAna Paula Seibert

Transformações com a Medicina de Família e Comunidade

Um caso clínico no ensino


*Nomes fictícios


Dona Maria, 58 anos, hipertensa e com hipotireoidismo vem à consulta agendada para atendimento com os alunos. Lucas passou o caso:


“- Prô, ela se queixou de uma dor na mandíbula, uma dor na nuca que acho que pode ser da hipertensão, dor nas canelas... [pensativo], dor nas mãos também... enfim, ela tem várias dores... muito inespecíficas...Fizemos o exame físico e está tudo absolutamente normal. A pressão hoje está um pouco alta, mas ela disse que não tomou o medicamento hoje, então acredito que é por isso que está alta”.

- “Muito bem, o quê mais?”

-“No histórico familiar, a mãe teve um AVC aos 79 anos, inclusive ela ajuda a cuidar dela...”

Ao que eu sinalizo com o cuidado de quem mostra os degraus à criança para ajudá-la a descer quando está aprendendo:

- “ Ela cuida da mãe que teve um AVC... Guardem muito bem essa informação pois é crucial! (eu, como Médica de Família e Comunidade, tinha certeza sobre a importância disso para a paciente e já sentia o cheiro de sobrecarga de cuidador e correlação clínica, mas estava com a mente aberta) Será que a mãe dela é acamada? Vamos ouvir mais sobre isso e com muita atenção (olhos arregalados para demonstrar a importância) pois pode estar relacionado com as queixas dela.”

- “Pois é, ‘profe’, ela falou que às vezes tem uma sensação de ansiedade, que dura alguns minutos, há alguns meses, e passa quando toma água de melissa.”

- “Que bom que vocês deram atenção para isso... Se ela cuida da mãe, principalmente se for acamada, é provável que seja a principal provedora de cuidados... e pode acabar sobrecarregada...Vamos chamá-la.”

- “Certo, prof. Ela também queria fazer os exames gerais com relação à hipertensão e à tireoide. A cada quanto tempo precisa fazer mesmo?”


Calculamos o risco cardiovascular com os exames do ano passado, 11%, e orientei os alunos a indicação de controle anual do TSH nos casos estáveis de hipotireoidismo.


Dona Maria voltou ao consultório, e a pergunta impulsionou a principal narrativa:

-“Os meninos me falaram das suas dores, da pressão, da tireoide... Conta um pouco mais com quem você mora e como é a sua rotina?”

- “ Eu moro com a minha mãe, que teve um AVC e é acamada. Eu que cuido dela quase todo o tempo. Mudo de posição, dou banho, coloco na cadeira de rodas e levo tomar sol...Tenho meu irmão, que é técnico de enfermagem, morando perto, mas ele não ajuda tanto assim. Meu filho tem aquela depressão, mas é aquela que não tem cura sabe? Tem um nome esquisito... E toma os remédios dele. Quando ele está bem ele ajuda até na casa, mas quando não está, nem adianta... Minha filha, o marido e minha netinha moram na casa dos fundos... Eu estava cuidando da minha neta também, faz pouco que ela voltou pra lá... Minha irmã mora na cidade aqui do lado, vem pouco para cá.”

- “Deve ser puxado, não é dona Maria? Com que idade sua mãe está?”

- “É sim.” Disse, num misto de orgulho pelo cuidado ofertado e também de desabafo. “Ela está com 91.”

- “Parabéns, dona Maria! Com certeza você tá cuidando muito bem da sua mãe... e também deve cuidar bem do seu filho e da sua neta. É uma médica nota 1000!”


Dona Maria deu uma risada boa. “ A senhora cuida de muita gente né, que bom que a senhora veio hoje pra conversarmos um pouco...” Deixei no ar e dona Maria foi certeira:


-“ Pois é, e quem cuida da gente, né?”


Segui: - “A senhora percebe que vindo aqui hoje, também é um jeito de se cuidar?” Dona Maria, já à vontade, fez que sim com a cabeça. E refletiu, elucidando qualquer dúvida diagnóstica, em combinação com a história e exame físico tranquilizadores, se organizando e significando suas queixas:

- “ Essa dor nas mãos por exemplo, e nas costas, acho que tem a ver porque lido demais, e às vezes sento pra ver TV e dá uma ansiedade, uma sensação ruim... acho que de muita coisa.. mas com a água de melissa passa. E fica semanas sem dar.”

Validada, perguntamos um pouco sobre a adesão ao anti-hipertensivo e ela completou a aula:

-“ Eu tomo sempre uma meia hora depois do remédio da tireóide que é em jejum, aí hoje saí pra vir aqui acabei não tomando. E o exame da tireoide também gostaria de fazer, que é todo ano, né...”

Fiz questão de ressaltar:

- “Vocês viram como a Dona Maria sabe muitas condutas médicas? Já pode vir atender conosco!”


Lucas confirmou: “É verdade dona Maria, pode sentar aqui e escrever”. Todos nós rimos.


Orientamos Maria sobre os sintomas, deixamos um medicamento sintomático para uso eventual, estimulamos (ou demos a “permissão”?) para os momentos de autocuidado, orientamos o manejo dos sintomas ansiosos, a possibilidade de retomar as caminhadas com a filha, os combinados sobre uma divisão de tarefas mais leve, pedimos um controle da pressão arterial e ela retornará com os exames, momento no qual reavaliaremos as dores e a ansiedade.

Lucas com olhar de uma descoberta fantástica traz na nossa discussão posterior do caso: Muito legal essa abordagem!!! Muitas vezes focamos muito na queixa, como robozinhos e esquecemos de ver esse outro lado... psicossocial da pessoa né?

- “Isso mesmo! É essencial fazermos essa investigação tanto quanto os outros aspectos. Às vezes a consulta se envereda pra algo que não imaginávamos e nem descobriríamos... Vocês viram que ela mesma já foi falando, conforme demos a oportunidade para ela refletir?! Os pacientes sabem muito...E talvez na próxima consulta ela esteja com menos dores!”


Saímos todos transformados do atendimento, eu, os alunos e dona Maria. O que é a Medicina se não transformação? De quadros clínicos, de significados dos quadros clínicos, de hábitos, da nossa prática, da vida.


23/06/2021

Ana Paula Seibert

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